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A ineficácia das normas sobre adensamento e suas sobreposições indesejáveis.

Atualizado: 28 de mar. de 2023

Resultado das melhores intenções, normas municipais voltadas à orientação urbanística registram poucos êxitos quanto aos resultados pretendidos. Caso notório são regras – algo padronizadas dispostas nos Planos Diretores de grandes cidades brasileiras – voltadas à limitação do adensamento. Sua ineficácia para controlar o número de habitantes em uma região é quase consensual. Mas, pior que isso, geram efeitos perversos.


Conforme Alain Bertaud em seu livro Order Without Design (MIT Press, 2018), cidades manifestam a ordem criada por pessoas e mercados, a partir de preços que, se distorcidos – por exemplo, por normas municipais – levam seus efeitos para o espaço urbano. É o interesse das pessoas que valoriza e adensa - ou não - determinadas áreas.

Como o próprio adensamento, planos diretores não são capazes de fazer frente a uma força motriz da economia: a demanda. Acabam, porém, interferindo em outra: a oferta e, ao reduzi-la, inflacionam o mercado. Bertaud aponta valores elevados de terrenos como o fator que mais aumenta a densidade. Quanto mais caro o metro quadrado, maior será o número de unidades menores. O resultado, conforme o urbanista, é o oposto do pretendido com a aplicação dessas normas.


As capitais brasileiras adotam planos diretores bastante restritivos e, neste ponto, Porto Alegre se destaca. Dispõe de um índice de aproveitamento de até 2,4 vezes a área do terreno, podendo atingir 3, por meio de aquisição de outorga onerosa. Há ainda regulamentos que determinam recuos laterais de até 25% da altura de edifícios. Desta forma, o envelope máximo da edificação acaba sendo mais restritivo que o já limitado potencial construtivo permitido para um terreno. Isso traz efeitos mais evidentes das distorções mencionadas por Bertaud: inflação do metro quadrado em áreas mais demandadas. A queda da oferta gera efeitos em cascata.


O mercado encontra diversas formas de contornar os limites estabelecidos por normas para manter o nível da oferta o mais próximo possível da procura.

O impacto negativo de normas volumétricas são maiores para terrenos pequenos, o que reduz sensivelmente o número de projetos em áreas mais consolidadas - onde grandes lotes praticamente inexistem. Os lançamentos nessas regiões são precedidos por negociações complexas, que envolvem diversos terrenos de diferentes proprietários, um processo por demais lento e burocrático.


Além do plano diretor, o Código de Edificações – que tem como objetivo garantir níveis mínimos de qualidade – acaba por elevar ainda mais as limitações quanto à volumetria, o que não raramente, inviabiliza empreendimentos. Nele, uma tabela define o tamanho mínimo para um pátio de ventilação que, nas fachadas externas, geralmente, significa a distância de uma abertura até a divisa do lote. Esta aumenta conforme o número de pavimentos do edifício. Porém, percentualmente, a relação recuo/altura da edificação diminui à medida que andares são acrescidos, indo de 50% no primeiro até 13% no décimo sétimo pavimento, como mostra o gráfico a seguir:


Ao mesmo tempo, o percentual de recuo do plano diretor aumenta de acordo com a altura do edifício: 18% até 27m, 20% até 42m e 25% até 52m (altura máxima permitida em Porto Alegre).


Sobrepondo as duas normas, em alturas inferiores a 18 metros, a maior restrição volumétrica parte do Código de Edificações e não do regime volumétrico do plano diretor, mesmo sendo este o regulamento que controla a volumetria máxima das edificações.


Essa relação piora quando são utilizados artifícios do próprio plano diretor, como a definição de uma referência de nível mais alto (caso de terrenos com aclives, muito comuns na cidade) e o uso de acomodação de cobertura para apartamentos duplex.


Tais artifícios possibilitam que se desconte até 6 metros da altura considerada no cálculo de recuos. No entanto, não é desconsiderado no raio mínimo do pátio de ventilação. Portanto, neste tipo de terreno, edificações de até 27 metros de altura devem considerar o pátio de ventilação definido pelo código de edificações.



Para o comprador, os efeitos práticos são menos opções de escolha – já que muitos projetos acabam sendo descartados – e o aumento do valor do metro quadrado.

Visualização isométrica da sobreposição do código de edificações no regime volumétrico do plano diretor e sua influência em terrenos de diferentes dimensões:



Relação entre regime volumétrico e áreas máximas alcançadas - somente terrenos com testadas acima de trinta metros conseguem alcançar o índice de aproveitamento máximo de três da capital:




Preços elevados expulsam pessoas de regiões centrais e, num país com um déficit habitacional da ordem de 8 milhões de domicílios (conforme a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias), não falta gente para morar, mesmo que seja longe. Se a densidade é limitada pelas normas, a expansão das cidades ocorrerá horizontalmente, para as periferias. Isso força o município a levar seus serviços a novas regiões, o que eleva os custos de todo o sistema, sem que a oferta – que nunca é universal – atinja um nível satisfatório. O que ocorre é o contrário, com o decréscimo da qualidade se expandindo mesmo para áreas centrais.


É evidente que regiões mais adensadas dispõem de serviços mais eficientes. A concentração de pessoas torna-os mais produtivos. A coleta de lixo, por exemplo, demanda frotas menores, menos funcionários, deslocamentos mais curtos, o que agiliza, melhora e barateia o serviço.


Cidades têm sua ocupação, arquitetura e urbanismo influenciados por regulamentos municipais, seja no país ou no exterior (alguns exemplos, neste artigo de Gabriel Prates). Porto Alegre se caracteriza cada vez mais por sucessivos prédios semelhantes, resultado de limitações volumétricas impostas por normas que se sobrepõem e levam a indústria a utilizar quase que uma única razão de adensamento em todas novas edificações.

Na cidade, obras podem, por meio da aquisição de outorga onerosa, atingir o potencial construtivo de até três vezes a área de seu terreno. Já em São Paulo, também via outorga, pode-se chegar a 4,5. Embora mais adensada que Porto Alegre, a capital paulista dispõe de um limite mais flexível mas, mesmo assim, totalmente subjetivo. Vários ícones arquitetônicos paulistanos não existiriam se a norma vigente hoje vigorasse quando de suas obras.


O Copan, projeto de Oscar Niemeyer na região central de São Paulo, é exemplo cabal. Além de combinar diversos usos e dispor de apartamentos de diferentes padrões – o que o torna um exemplo de bom urbanismo – tem uma área construída que supera em mais de 20 vezes a de seu terreno. O edifício da sede do IAB-SP, projetado por Rino Levi, Miguel Forte, Abelardo de Souza e equipe, em 1946, tem 2.200m² de área construída num terreno de 282m². A sede do CAU/SP, projetado pelo escritório de Ramos de Azevedo, com 8 pavimentos, 4.273m² de área construída em terreno de 485m², é outro caso.

O regime volumétrico da cidade de São Paulo, diferente de Porto Alegre, não é mais restritivo que seu possível adensamento. Recuos seguem a fórmula (Altura - 6)/10 sendo, percentualmente, menos da metade do recuo exigido na capital gaúcha.


Se o mercado dispõe de uma agilidade natural para identificar demandas, o poder público sofre com dificuldades intrínsecas para responder às necessidades de seus cidadãos e adequar normas urbanísticas à realidade de cada momento. Conforme estabelece o Estatuto das Cidades, planos diretores devem ser revistos a cada dez anos, período por demais insatisfatório.


No caso de Porto Alegre – onde as discussões em curso apontam alterações meramente pontuais –, a última revisão ocorreu 2010. Desde então, houve mudanças sensíveis no comportamento das pessoas, o surgimento de serviços e tendências de consumo – que serão sucedidas por outros em número e velocidades crescentes com o passar dos anos. Nasceram o Uber e outros aplicativos de compartilhamento de viagens. Um número crescente de pessoas perdeu o interesse em possuir automóveis, levando montadoras a desenvolverem serviços próprios de locação. Surgiu o AirBnB, o home office se expandiu etc. etc. etc. e, exceto por alguns decretos municipais, o plano diretor porto alegrense, como quase todos seus similares brasileiros, permaneceu estático.


Por conta de atrasos, a revisão do plano diretor de Porto Alegre dá-se em meio à pandemia. Dentre incontáveis reflexos que ainda surgirão do coronavírus, o mais evidente é a intensificação do trabalho remoto ou híbrido. Desta forma, profissionais tendem a valorizar menos a localização da residência e, ao mesmo tempo, demandar áreas maiores para residir a fim de acomodar um novo cômodo para exercer suas atividades profissionais ou simplesmente para terem maior conforto, visto que passarão maior tempo em casa. O resultado disso é a procura por imóveis mais distantes do centro comercial, onde o valor do metro quadrado é menor.


Mesmo com a adesão ao trabalho remoto, a demanda por moradias próximas a centros comerciais não deverá diminuir, porém possivelmente venha a se alterar. Um estudo realizado em fevereiro do ano passado pelo IPEA mostra que somente 9,1% dos 80,2 milhões de trabalhadores ocupados e não afastados estão trabalhando remotamente. A remuneração desses profissionais somou R$ 32 bilhões, o que corresponde a 17,4% dos R$ 183,5 bilhões da massa de rendimentos efetivamente recebida por todos os ocupados no país durante o mês de novembro. Quanto maior a renda do profissional, mais provável que o seu trabalho possa ser realizado remotamente.



Essa possível mudança no perfil socioeconômico do público que demanda moradia próximo das áreas centrais resultará num ajuste do produto ofertado nessas regiões: apartamentos compactos para famílias, o que pode, inclusive, aumentar a densidade dessas regiões – o oposto do planejado por muitos críticos da revisão do plano diretor da cidade. Esse movimento é só mais um exemplo de quão dinâmica é uma cidade e o quão rápido o mercado pode absorver essas mudanças. Já as normas e suas revisões, mesmo quando pensadas para as mudanças que estamos presenciando, podem gerar efeitos opostos aos esperados – e isso só serão atualizadas novamente na próxima década.


Regulamentos não são capazes de controlar uma realidade cada vez mais dinâmica que dispõe de número crescente de situações imprevisíveis. Cidades são criadas por pessoas e materializam-se por meio de mercados, os quais são formados por indústria (oferta) e habitantes (demanda). A insistência de gestores municipais no atual modelo, que interfere em áreas privadas ao invés de se concentrarem em espaços públicos, continuará a gerar distorções.



Texto de autoria de Rodrigo Rocha

 

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